Relatório preliminar da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA (Organização dos Estados americanos), aponta que
adolescentes e jovens infratores recolhidos em duas unidades do Complexo Raposo Tavares da
Fundação Casa, em São Paulo, teriam sofrido agressões sistemáticas.
Há relatos de tortura e sevícias. A situação, porém, não está restrita apenas a esta unidade.
“Existe uma tradição institucional de violência e de opressão nas unidades da Fundação Casa”, diz o advogado Ariel de Castro Alves, especializado na defesa dos direitos da criança e do adolescente.
Os relatores da Comissão vistoriaram, em novembro, a Casa Cedro e Casa Aroeira. Eles receberam denúncias graves como a prática chamada “recepção”, quando adolescentes recém-chegados são isolados em celas e espancados por vários agentes.
Há ainda relatos de menores, muitas vezes nus, submetidos por longo período de tempo a posições dolorosas. Este método de tortura foi usado pelos americanos na Guerra do Iraque.
As denúncias foram encaminhadas à OEA em 2015, quando a Defensoria Pública de São Paulo relatou ao órgão a situação de risco que corriam os adolescentes recolhidos na unidade Raposo Tavares.
No ano seguinte, a Comissão publicou uma resolução com pedido para que o governo brasileiro garantisse a vida e a integridade física dos menores. O Ministério Público Estadual informou a OEA que havia aberto investigação contra a fundação e a direção da unidade. O chefe do MP na época era o procurador Márcio Elias Rosa, atual presidente da Fundação Casa e secretário de Justiça.
Em nota, a Fundação Casa afirmou que "não compactua com qualquer tipo de violação dos direitos humanos dos jovens em cumprimento de medida socioeducativa" (leia a nota na íntegra ao final desta reportagem).
Sobre a reportagem, a entidade disse que o "suposto contexto estrutural e generalizado de atos de violência referido na reportagem não diz respeito à Fundação CASA e não guarda nenhuma relação de veracidade com o funcionamento dos 145 centros socioeducativo mantidos pela Fundação".
Violência do "Batismo"
"Já cheguei apanhando. Os agentes de segurança me bateram e disseram que aquilo era uma recepção para ninguém aprontar nada lá dentro", conta um ex-interno da Unidade Jatobá, que terá sua identidade preservada. O jovem ficou recolhido durante um ano por roubo. Ele deixou a Fundação Casa em julho de 2017 e hoje trabalha como modelador de madeira em uma empresa de São Paulo.
O "Batismo" é apenas a porta de entrada da violência na Fundação Casa. O jovem conta que é comum serem instigados pelos agentes a agredirem uns aos outros como uma maneira de manter o controle. "Os funcionários ficam de ‘piadinha’ falando de canto, que um adolescente falou mal do outro. Aí o adolescente já fica com raiva do outro". E completa: "eles [os agentes de segurança] ainda dão risadas e falam: olha aí a briga de galinha. Termina de se bater logo que depois eu tranco os dois”.
O relato do menor é confirmado por um funcionário da mesma unidade que pediu para não ser identificado. "Assim que os adolescentes chegam são agredidos pelos agentes de segurança, como forma de impor quem manda na unidade", conta.
Ele explica que os casos de violência são comuns em muitas das unidades da Fundação Casa. Para evitar que os jovens denunciem os abusos às autoridades, eles passam por sessões de tortura psicológica. "Ocorre bastante ameaça psicológica também. É comum frases do tipo: eu sei onde você mora, eu sei onde sua família trabalha”.
Poucos adolescentes têm coragem de romper o silêncio e levar as denúncias de agressão para fora das paredes do sistema.
Jovem teria sido agredido por socos e pontapés por funcionáriosArquivo PessoalR7
Cabo de Vassoura
Em maio do ano passado, o jovem E.C., de 18 anos, interno na Unidade Jatobá (uma das cinco do Complexo Raposo Tavares), teria sido agredido por socos e pontapés pelos funcionários. Também teria sido vítima de abuso pelo diretor do complexo. Foi registrado boletim de ocorrência de lesão corporal e tentativa de estupro no 75ºDP (Jardim Arpoador).
"O diretor do complexo tentou introduzir um cabo de vassoura no ânus do declarante, mas não conseguiu", consta no histórico da ocorrência ao qual o R7 teve acesso.
E.C foi levado à delegacia por Gledson Silva Deziatto, conselheiro tutelar da região de Raposo Tavares. Ele conta que trabalha há 7 anos na região e durante todo esse período recebeu acusações de adolescentes que são vítimas de maus tratos, ataques físicos e psicológicos.
"As agressões acontecem, na minha percepção, na minha visão, diariamente. Todas as vezes que estou presente dentro da unidade há denúncias contra os funcionários da unidade Raposo Tavares", afirma.
De acordo com Deziatto, a impunidade é regra nestes casos. Os agressores são conhecidos, os órgãos oficiais são informados e mesmo assim os abusos continuam ocorrendo sem punição. "São sempre os mesmos nomes", diz.
As denúncias de tortura de maus tratos no Complexo Raposo Tavares acontecem há muito tempo, quando a instituição ainda era chamada Febem. Há casos funcionários da unidade condenados por tortura ao promover sessões de espancamento e privação de água e alimentos ocorrido em 2000.
"A violência contra os menores acontece desde a época de Febem. A mudança para Fundação foi uma mudança só de nome mesmo", conta um funcionário que trabalha na instituição há quase duas décadas.
O advogado Ariel de Castro Alves completa: “Mesmo com as mudanças, a partir de 2005, de Febem para Fundação Casa, a violência se manteve constante”.
Leia a nota da Fundação Casa na íntegra:
"A Assessoria de Comunicação da Fundação CASA reafirma que a Instituição não compactua com qualquer tipo de violação dos direitos humanos dos jovens em cumprimento de medida socioeducativa.
O suposto contexto estrutural e generalizado de atos de violência referido na reportagem não diz respeito à Fundação CASA e não guarda nenhuma relação de veracidade com o funcionamento dos 145 centros socioeducativo mantidos pela Fundação.
A Fundação acolheu a Comissão Interamericana, a ela prestou todas as informações necessárias, ficando cabalmente demonstrado que todos os direitos fundamentais e o próprio Sinase (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo) são fiel e integralmente cumpridos no Estado de São Paulo.
A Fundação CASA recebe permanente fiscalização do Poder Judiciário, Ministério Público, Conselho Tutelar e de toda e qualquer entidade incumbida de direitos humanos."