Quando começou a trabalhar na área social, em 1986, o geógrafo Itamar Gonçalves sentiu que tinha descoberto o seu caminho, e que não ia parar mais. Desde então, tem liderado importantes projetos em instituições públicas e em organizações não governamentais em defesa da criança e do adolescente, como a Fundação Abrinq.
Pós-graduado em Psicologia, com foco em violência doméstica, pela Universidade de São Paulo (USP) e, hoje, coordenador de programas da Childhood Brasil, o especialista avalia que, após 20 anos da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), conscientizar e conquistar o apoio da sociedade na prevenção e enfrentamento ao abuso sexual de crianças e adolescentes ainda é um dos principais desafios.
Qual foi sua maior motivação para começar a estudar e trabalhar com o tema da violência doméstica e sexual de crianças e adolescentes?
Fui estimulado pelo trabalho que realizei para o Estado, atendendo crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica, em abrigos. Comecei no final da década de 80, quando estava surgindo o ECA e já havia aquela efervescência na discussão dos direitos humanos, mas ninguém sabia direito o que seria, de que forma poderia fazer a diferença.
Foi interessante trabalhar no Programa Casa Abrigo, porque já era um sistema diferenciado, considerado referência na Europa. Estávamos aprendendo a trabalhar num serviço multiprofissional, em conjunto com as Varas da Infância, com cerca de 20 crianças, inclusive com grupos de irmãos.
Quais os principais avanços e desafios no enfrentamento da violência sexual de crianças e adolescentes, quando o Estatuto da Criança e do Adolescente completa 20 anos?
O aspecto mais revolucionário do ECA foi a criança e o adolescente passarem a ser vistos como sujeitos de direito e de sua própria história. Antes do ECA eles não eram vistos como cidadãos. Esta mudança trouxe um novo significado ao papel dos órgãos existentes – da Justiça, do Ministério Público e da Defensoria Pública, antes voltados apenas para os adultos. O ECA conseguiu gerar um sentimento de indignação frente a situações inaceitáveis como o abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes. Hoje já se vê uma maior disposição de governos, do setor privado e da sociedade em geral em trabalhar o problema.
Outro grande avanço, também fundamentado no ECA, foi a criação dos Conselhos Tutelares, que, embora ainda apresentem muitas falhas, tanto estruturais quanto em termos de operação, são a primeira instância a ser acessada nos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. Os Conselhos são responsáveis por acionar todas as outras instâncias responsáveis por garantir o cumprimento dos direitos infantojuvenis com prioridade absoluta e dão visibilidade ao tema.
O Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Infantojuvenil foi instituído em 2002, em concordância com a nova lei. De certa forma, o Plano priorizou apenas a questão da exploração sexual, enquanto, segundo os índices do Disque Denúncia Nacional, o Ligue 100, os casos de abuso são ainda mais numerosos. O fato é que o enfrentamento a ambos os fenômenos é um desafio permanente.
Como o cidadão comum pode romper o pacto do silêncio e contribuir?
Propagamos ainda o mito de que não devemos nos intrometer na estrutura familiar, que “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”, e por aí vai, mas não podemos nos omitir ao vermos uma criança que aparece machucada, que de forma nítida ou subliminar nos pede socorro, porque ela precisa de ajuda. No caso recente da garota de Goiás que teve a língua queimada e também foi abusada sexualmente, por exemplo, a sessão de tortura só cessou quando um vizinho tomou uma atitude, fazendo a denúncia.
O cidadão não pode ficar calado em casos suspeitos ou confirmados de violência sexual infantojuvenil. Não é preciso ter medo, porque você pode fazer a denúncia sem ser identificado pelo Ligue 100 e eles vão apurar o caso.
Os profissionais de saúde e educadores também devem estar atentos, porque sua omissão contribui para que situações perversas sejam perpetuadas. Ainda é cultural não dar voz para a criança, mas prestar atenção e escutá-las pode salvar vidas e cessar o ciclo da violência.
Como o senhor avalia o trabalho realizado hoje no Brasil com redes de proteção e prevenção em comparação a outros países?
A legislação brasileira na área da infância e adolescência é tida como referência na América Latina, mas, na prática, as políticas públicas funcionam mais em países desenvolvidos. Nos Estados Unidos, por exemplo, já existem os depoimentos em salas especiais, onde a criança conta a violência sofrida uma única vez. Aqui no Brasil já começamos a ter algumas iniciativas deste tipo, como em Porto Alegre e em Recife, por exemplo, mas temos muito por avançar neste e em outros pontos sensíveis, como no trabalho junto às famílias. Precisa ser um trabalho aprimorado para que as famílias não desmoronem após um caso de abuso sexual, para que não culpem a criança pela desgraça da família. É preciso ajudar as famílias a se reorganizarem para tocar a vida adiante.
É importante lembrar que o abuso sexual existe em todas as camadas sociais, inclusive nos países desenvolvidos. Acredito que não basta apenas realizar campanhas de conscientização social e apoiar bons projetos de prevenção e atendimento, que, é claro, têm seu mérito e relevância, mas, para se conseguir escala, é imprescindível avançarmos no âmbito das políticas públicas voltadas para o tema.